segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A quem interessam as remoções no Rio?

Por Renato Cosentino, em Cidades Possíveis

   A demolição de casas e a remoção de favelas, sob o argumento de preparação do Rio de Janeiro para os grandes eventos esportivos, vem afetando milhares de famílias. No entanto, O Globo - principal jornal da cidade - havia ignorado o tema. As notícias chegavam pelo espanhol El País, pelo britânico Guardian, por relatórios de violação do direito à moradia, e até mesmo por denúncias da ONU. Na semana passada, enfim, o silêncio foi rompido por duas manchetes de capa (4 e 5/10) e um editorial (6/10). As remoções finalmente se tornaram uma questão.

   Mas da mesma forma que foi apresentada, a questão foi resolvida. Segundo o editorial do jornal, Copa do Mundo e Olimpíadas seriam “a chance de o Rio enfrentar desafios impostos pela ocupação anárquica”. E ainda o quadro opinativo da matéria do dia 5/10 “ALERTA: A acertada decisão de se remover a Vila Autódromo, na Barra, atende a interesses urbanísticos da cidade e a compromissos do Rio com a realização dos Jogos Olímpicos. Como, na mão contrária, contraria conhecidos interesses — políticos, ideológicos e especulativos — da indústria de ocupações ilegais, deve-se ficar alerta contra esperadas ações de solapamento do projeto”.

   Seguindo a linha de argumentação do jornal, as mais de mil favelas do Rio de Janeiro, com seus milhões de moradores, seriam fruto da “indústria de ocupações ilegais”, e não do déficit habitacional que faz a população autoconstruir moradias. Com as remoções, o governo de Eduardo Paes estaria acima de “interesses políticos, ideológicos e especulativos” para então “enfrentar desafios impostos pela ocupação anárquica”. No entanto, sabe-se que os reais interesses atuam em outra esfera. Acreditar que o morador de favela ou o PM miliciano são os grandes especuladores desse mercado é, no mínimo, inocente.

   Faz-se necessário, em primeiro lugar, destacar alguns dados disponíveis na internet. Segundo o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), das dez maiores doações de empresas para a campanha que elegeu Eduardo Paes em 2008, dez são do setor de construção ou imobiliário. No total foram arrecadados R$ 11,4 milhões. Além disso, segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ), o setor “Mercado Imobiliário” é o maior anunciante do meio Jornal, com mais de 4 milhões de reais em 2010, seguido de “Veículos, Peças e Acessórios”. Os dados ajudam a entender alguns discursos e decisões sobre a cidade.


Vila Autódromo, numa das pontas do triângulo que compõe o futuro Parque Olímpico (centro da imagem).



   A Vila Autódromo ocupa atualmente uma pequena área do que será o bairro Parque Olímpico, na Barra da Tijuca. Tão pequena que o projeto do escritório de arquitetura inglês, Aecom, sequer prevê o uso do terreno para os Jogos. Apesar do Globo dar como certa sua remoção como um compromisso para as Olimpíadas, de fato esse não é o motivo. A Barra é o principal bairro da frente de expansão imobiliária do Rio, com grandes avenidas para automóveis individuais, condomínios fechados e belezas naturais. Até a nova novela das oito, Fina Estampa, é filmada lá. Todas as vias expressas em construção (TransCarioca, Oeste e Olímpica) ligam o bairro a algum lugar, e o Metrô, pulando etapas previstas no projeto original, será esticado até o Jardim Oceânico. Será que a Vila Autódromo cabe ali?


   Está claramente em andamento na cidade um projeto de elitização dessa região, e a Vila Autódromo não é o único alvo. Vila Harmonia, Vila Recreio II, Restinga, entre outras, já foram removidas. Muitas nem deveriam ser consideradas favelas, já que eram infra-estruturadas e os moradores possuíam o título de posse. Tornar a Barra um lugar ainda mais exclusivo interessa aos doadores de campanha de Paes, que assim podem aumentar a margem de lucro dos novos empreendimentos. Sob esta lógica, morar entre “iguais” puxa o valor do imóvel para cima, enquanto a proximidade com a população de baixa renda o desvaloriza. No Parque Olímpico, o negócio está explícito e previsto na parceria público-privada: 75% da área de mais de um milhão de metros quadrados será entregue ao consórcio de empreiteiras após 2016.
 


Destroços da Vila Harmonia, ao lado do Recreio Shopping e dos novos condomínios. O motivo oficial da remoção é a construção da TransOeste, mas a via vai passar do outro lado da Avenida das Américas. (Foto: Renato Cosentino)
 

   O que pouca gente sabe é que a lei 11.124/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Nacional, tem como diretriz, em seu artigo 4º, a “utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse social”. Ou seja, não só as áreas não utilizadas do Parque Olímpico como boa parte da região portuária, que são públicas, deveriam servir à construção de habitação popular, deixando a cidade mais diversa e socialmente justa. Paes, ao invés de cumprir a lei, decidiu comprar um terreno privado por R$ 19,9 milhões para reassentar os moradores da Vila Autódromo. Os donos? Doadores de sua última campanha. O Globo silenciou, afinal quem doa também anuncia. Essa é a liberdade de expressão da nossa democracia.
Democracia?

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