quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Uma nova etapa na história do país se abriu em junho de 2013

Rodrigo de Souza Dantas, professor de filosofia política na UnB
Especial para a ANOTA 

As manifestações de massa que varreram o país em junho de 2013 refluíram nos últimos meses, mas deixaram suas marcas. Após um longo período de refluxo, a indignação com a corrupção generalizada dos governos e das instituições do regime político, com a situação falimentar dos serviços públicos e a violência policial empregada contra as manifestações tomou as ruas espontaneamente a partir de convocatórias nas redes sociais. Às vésperas da Copa do Mundo e das Olimpíadas, tudo indica que o período de crescimento econômico e estabilidade política que caracterizou os dez anos de governo do PT em aliança com a burguesia chegou ao fim. 

A conjuntura que começa a se desenhar indica que estamos no limiar de uma nova etapa na história do país, que promete ser marcada pelo acentuado desgaste dos governos e do regime político, pelo esgotamento do modelo econômico neoliberal estabelecido no país desde os anos 1990, pelo declínio da hegemonia petista sobre a classe trabalhadora e por um crescimento das lutas e das mobilizações de massa, sem que ainda se tenha no horizonte a perspectiva estratégica de uma alternativa concreta de poder.

A conjuntura mundial marcada pela maior crise econômica do pós-guerra e a maior onda mundial de mobilizações de massa desde os anos 1960-70 chegou ao país. A oferta de crédito que impulsionou o consumo de massas entrou em declínio e cedeu lugar ao endividamento generalizado de famílias, empresas e estados. O fluxo de capitais externos que inundou o país e desnacionalizou nossa economia esgotou-se, transformando-se numa fuga de capitais que está levando a déficits na balança de pagamentos e à desvalorização do real. Tudo isso alimenta as pressões inflacionárias, a queda do consumo, a elevação das taxas de juros, o crescimento da dívida pública, o arrocho salarial e a queda dos investimentos e da produção industrial. Estamos diante de um quadro que aponta, nos marcos da crise iniciada nos EUA em 2007-08, para uma etapa mais ou menos longa de estagnação e declínio econômico no país e no mundo. 

As manifestações de junho trouxeram um elemento novo em relação às clássicas situações revolucionárias do século XX, que tem se manifestado em maior ou menor medida em quase todos os países: a desconfiança generalizada não só em relação aos governos e ao regime político e suas instituições, mas também em relação aos partidos e organizações tradicionais da classe trabalhadora, que sempre estiveram à frente de todos os grandes movimentos de massa durante aquele que foi o século mais revolucionário da história até aqui. As razões que explicam esta desconfiança representam um grande desafio para a esquerda. 

O trágico destino burocrático da URSS e dos países que expropriaram a burguesia no século XX, a ampla desmoralização do socialismo aos olhos das massas, a integração generalizada dos partidos e organizações da classe trabalhadora à ordem vigente e a conversão das maiores organizações de massa que a classe trabalhadora construiu na história do país (o PT e a CUT) nos principais sustentáculos do regime burguês já seriam suficientes por si sós para justificar essa desconfiança. Mas suas raízes são mais profundas e estão visceralmente ligadas a um processo de “mafialização” da vida social, que se desdobra na percepção de uma corrupção ampla, geral e irrestrita de todo o tecido social e na naturalização cínica do individualismo como único padrão “ético” possível numa sociedade em que “tudo está dominado”. 

Se a “mafialização” da vida social é antes de tudo uma expressão concreta e coerente dos modos de vida dominantes na sociedade capitalista, uma de suas consequências mais alarmantes é a desconfiança geral diante de qualquer forma de associação ou de organização coletiva entre os indivíduos e o profundo ceticismo em relação à eficácia de qualquer ação coletiva capaz de transformar a realidade social. Num quadro como esse, abre-se espaço para que a insatisfação popular se manifeste na forma da violência desorganizada, o que apenas facilita a ação de bandos fascistas, a violência policial e a criminalização dos movimentos sociais.  

A principal lição que fica para os que participaram das jornadas de junho é que não será possível continuar a lutar sem organização – ainda que não se tenha claro o tipo de organização, programa ou estratégia comum a ser adotada após a desarticulação completa dos referenciais políticos herdados do século XX. Numa situação em que a influência social das organizações da esquerda que romperam com o PT é ainda muito débil para que elas possam representar uma alternativa de poder, a tática de frente única se impõe como única forma de impulsionar a necessária construção de organismos de massa para dirigir e unificar as mobilizações em torno de um programa e uma estratégia comum. 

Numa etapa histórica cujas características exigem a elaboração de sínteses e categorias históricas que não podem mais ser mecanicamente transpostas dos períodos anteriores da história da luta de classes, a construção de uma Frente de Esquerda nas lutas, nas greves e nas eleições de 2014 é o primeiro passo a ser dado num cenário em que o desafio de construir uma nova direção para a revolução brasileira foi colocado na ordem do dia.

Este é primeiro artigo da coluna do Rodrigo Dantas aqui na ANOTA. A ideia é começar com uma série sobre o junho de 2013 e seus desdobramentos - que se desenvolva na direção de um questionamento das características da IV etapa da luta de classes e das atualizações necessárias das categorias históricas do marxismo.

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