terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

MPF denuncia seis por atentado a bomba no Riocentro ocorrido em 1981

Por MPF-RJ

 Para procuradores, crimes são imprescritíveis e penas máximas
 podem passar de 66 anos de reclusão

(Foto: Rodrigo Noel)
   O Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro denunciou seis pessoas por envolvimento no atentado a bomba ocorrido nas dependências do complexo Riocentro, em Jacarepaguá, no dia 30 de abril de 1981, durante a realização de um show para comemorar o Dia do Trabalhador. Na ocasião, uma das bombas carregadas pelos denunciados explodiu no colo de um dos criminosos no momento em que se aproximava de carro do complexo. Outra bomba foi lançada na subestação de eletricidade do Riocentro, com o objetivo de cortar a energia. A ação dos militares pretendia causar pânico e terror na plateia do show e na população, atribuindo falsamente o atentado a uma organização da militância contra o regime de exceção, e assim, justificar um novo endurecimento da ditadura.

   O coronel reformado Wilson Luiz Chaves Machado, vulgo "Dr. Marcos", o ex-delegado Claudio Antonio Guerra e os generais reformados Nilton de Albuquerque Cerqueira e Newton Araujo de Oliveira e Cruz foram denunciados por homicídio doloso tentado (duplamente qualificado por motivo torpe e uso de explosivo), por associação criminosa armada e por transporte de explosivo. Newton Cruz foi denunciado ainda pelo crime de favorecimento pessoal. O general reformado Edson Sá Rocha, vulgo "Dr. Silvio", foi denunciado por associação criminosa armada e o major reformado Divany Carvalho Barros, vulgo "Dr. Aureo", por fraude processual. As penas de Wilson Machado, Claudio Guerra e Nilton Cerqueira podem chegar a 66 anos e 6 meses de reclusão, e a de Newton Cruz a 67 anos. 

   O MPF pede que Wilson Machado, Claudio Guerra e Nilton Cerqueira sejam condenados a penas não inferiores a 36 anos de reclusão; Newton Cruz a pena de pelo menos 36 anos e 6 meses de reclusão; Sá Rocha a pena não inferior a 2 anos e 6 meses e Divany Barros a no mínimo 1 ano de detenção. O MPF requer ainda que os denunciados sejam condenados à perda do cargo público, com o cancelamento de aposentadoria, à perda de medalhas e condecorações obtidas e a pagar indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 500 mil, a ser divido pelos denunciados.  

   As investigações do MPF duraram quase dois anos e envolveram a análise de 38 volumes de documentos. Foram tomados depoimentos de 42 testemunhas e investigados, num total de 36 horas de gravação. Foram expedidos 86 intimações e 79 ofícios requisitando informações, além de três pedidos de cooperação internacional para França, Bélgica e Argélia. As investigações identificaram o envolvimento dos seis denunciados, além de outros nove envolvidos que já faleceram. 

   Na denúncia, o MPF, através do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, apresenta novos documentos e testemunhas que permitiram a identificação de várias pessoas envolvidas no esquema criminoso, revelaram diversos codinomes de militares e civis e trouxeram elementos de prova novos. Dentre os documentos, está a agenda do então comandante do Destacamento de Operações de Informações (DOI) no Rio de Janeiro, o já falecido Tenente-Coronel Julio Miguel Molinas Dias, vulgo "Dr. Fernando". Na agenda, o militar relatava, hora a hora, minuto a minuto, as informações que recebia a respeito do caso do Riocentro.

   Os procuradores da República Antonio do Passo Cabral, Sergio Suiama, Ana Cláudia de Sales Alencar, Tatiana Pollo Flores, Andrey Mendonça e Marlon Weichert  apontam que os crimes narrados na denúncia ocorreram após a Lei da Anistia e, por terem sido cometidos no contexto de um ataque sistemático ou generalizado a uma população civil, são imprescritíveis, sendo considerados crimes contra humanidade, tanto pelo direto internacional quanto pela decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil. O MPF defende também que, em 1988, antes de esgotar o prazo prescricional, a Constituição da República considerou imprescritíveis as "ações de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". As imputações de fraude processual e favorecimento pessoal foram perpetradas até muito tempo depois do advento da Constituição de 1988, o que também as torna imprescritíveis. 

   "O caso do atentado do Riocentro é emblemático porque revela a torpeza e os objetivos deste grupo de radicais, integrado por membros das Forças Armadas, que estava disposto a detonar artefatos explosivos contra a própria população, num show com 20 mil jovens, apenas para gerar um clima de pânico para justificar o endurecimento da ditadura militar", afirma o procurador da República Antonio do Passo Cabral. 

O planejamento do atentado

   De acordo com as investigações do MPF, os denunciados planejaram minuciosamente o ataque desde de um ano antes até o dia do show, tendo praticado o crime com a participação decisiva de outros militares já falecidos. Para execução do atentado, a organização criminosa tinha um núcleo de planejamento e um núcleo operacional (também denominado "Grupo Secreto"). O tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira, vulgo "Dr. Flávio", conhecido agente da repressão que atuou nos principais órgãos de informação, era o elo entre os dois núcleos e entre os altos escalões das Forças Armadas e os agentes operacionais que teriam treinamento para executar as ações. Perdigão transmitia aos agentes operacionais as ordens de missão definidas pelo núcleo de planejamento. 

   Formado por oficiais do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do DOI, o núcleo de planejamento tinha as funções de arregimentar agentes operacionais dentre aqueles que mostrassem habilidades técnicas e alinhamento ideológico com a "linha dura", promover o treinamento dos agentes para manuseio e utilização de explosivos, planejar as ações definindo os alvos, providenciar os meios materiais e instrumentos para a execução dos ataques e ordenar e influenciar para que as atividades fossem encobertas. O planejamento ocorria predominantemente em dois locais: o restaurante Angu do Gomes e o bordel que ficava ao lado, ambos na zona portuária do Centro do Rio de Janeiro. Participavam das reuniões vários coronéis e generais, como o denunciado Nilton Cerqueira.

   O planejamento da ação previa a explosão da casa de força do Riocentro, causando apagão e gerando pânico nos espectadores; a explosão de três bombas dentro do pavilhão, provavelmente no palco; e a fabricação de provas para atribuir falsamente o atentado a grupos armados que resistiam à ditadura. 

   O então major e hoje general Edson Sá Rocha, vulgo "Dr. Sílvio", foi quem apresentou o plano de explodir o Riocentro, em 1980, à Chefia da Seção de Operações. O então chefe da Central de Operações de Informações do DOI, o hoje coronel Romeu Antonio Ferreira, proibiu a execução do plano naquele ano. Porém, um ano depois, com a saída de Romeu do DOI, o atentado ocorreu. Para o MPF, ficou comprovado que Edson Sá Rocha participou da confecção do plano, que já se intentava executar um ano antes das explosões. 

   Em depoimento ao MPF, o denunciado Newton Cruz, que era chefe da Agência Central do SNI em Brasília na época, confessou que soube do planejamento do atentado antes de sua ocorrência e optou por não fazer nada para evitá-lo. Pela condição que detinha, Newton Cruz podia e devia interromper a execução, ordenando que o atentado cessasse ou informando as autoridades de segurança pública para que interviessem. Newton Cruz afirmou ainda que um mês depois do atentado, reuniu-se em um hotel de Copacabana com dois elementos do DOI pertencentes ao "Grupo Secreto", e responsáveis pela série de atentados a bomba. Por ter escondido a identidade desses indivíduos que participaram do ataque ao Riocentro, Newton Cruz foi denunciado pelo crime de favorecimento pessoal.

A execução 

   O núcleo operacional da organização criminosa era formado por radicais de extrema direita, civis e militares, e trabalhava com várias equipes para executar os atentados a bomba. Na ação no Riocentro, pelo menos quatro equipes operacionais foram para o complexo. A primeira equipe operacional era formada pelo denunciado Wilson Machado e pelo sargento Guilherme Pereira do Rosário, vulgo “Agente Wagner”. Wilson estava ao volante e o sargente Rosário estava no banco do carona, com uma bomba em seu colo. Outras duas bombas estavam no banco de trás do veículo. Enquanto procuravam a melhorar maneira de instalar as três bombas no pavilhão, os militares pararam o carro no estacionamento do Riocentro. Rosário manuseava a bomba apoiada em seu colo quando ela explodiu em sua mãos, matando-o e comprometendo a operação. 

   A segunda equipe operacional, chefiada pelo coronel Freddie Perdigão Pereira, dirigiu-se para a casa de força do Riocentro e detonou outra bomba, com o objetivo de cortar a luz do complexo. Porém, a bomba não acertou em cheio o alvo e não teve potência para destruir a casa de força.  

   Já a terceira e quarta equipes operacionais tinham a missão de forjar evidências da autoria do atentado, culpando movimentos de esquerda. A terceira equipe era integrada pelo então delegado Claudio Antonio Guerra, que iria efetuar prisões de indivíduos que seriam falsamente relacionados às bombas. Já a quarta equipe promoveu a pichação de placas e muros nas redondezas do Riocentro com os dizeres “VPR”, sigla da Vanguarda Popular Revolucionária, movimento de guerrilha armada praticamente extinto em 1972, após a morte da maioria de seus integrantes.  

   O atentado contou ainda com a colaboração do então Comandante-Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o denunciado Nilton Cerqueira, que horas antes do evento determinou a suspensão do policiamento do show no Riocentro. Nilton deu a ordem por telefone, de Brasília, onde havia se reunido com altas autoridades dos órgãos de informação. 

O acobertamento dos crimes

   O fracasso do atentado levou os militares da "linha dura" do Exército, sobretudo do DOI e do SNI, a iniciarem um esforço conjunto para tentar encobrir o caso. Após a explosão da bomba prematuramente no colo do sargento Rosário,  o denunciado e então capitão Divany Barros subtraiu do local da explosão a agenda de telefone do sargento Guilherme do Rosário, documentos pessoais dos militares, uma granada de mão e uma pistola.  Em depoimento ao MPF, a viúva do sargento Rosário relatou que militares do DOI foram a sua casa, ameaçaram-na diante de seus filhos e atearam fogo em documentos relacionados ao trabalho de seu marido. Os militares teriam ainda suprimido partes das folhas de alterações do Sargento Rosário. 

   O inquérito policial instaurado em 1981 para apurar o caso também sofreu diversas interferências, com provas desaparecendo, testemunhas ameaçadas e peritos pressionados. Responsável pelo inquérito, o já falecido coronel Job Lorenna de Sant´Anna distorceu provas, suprimiu documentos e fotos, e concluiu que os agentes do DOI não seriam os autores do atentado, mas teriam sido vítimas de uma bomba posta por "subversivos" entre o banco direito e a porta do carro.  

   "As investigações ainda prosseguem para identificação precisa de outros indivíduos envolvidos nos crimes. O MPF segue algumas vertentes investigativas que foram traçadas estrategicamente para desvelar a trama em todas as suas nuances. Contamos também com a colaboração de toda a sociedade. Todo aquele que possuir informações relevantes pode encaminhá-las, por escrito ou pela internet",  afirma o  afirma o procurador da República Antonio do Passo Cabral.

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