sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Os desafios estratégicos que a polarização social coloca para a esquerda brasileira

por Rodrigo Dantas, professor de  filosofia social da UnB
especial para a ANotA

(Foto: ANotA)
Após anos de crescimento econômico e estabilidade política, o país caminha para uma situação de polarização social. A corrupção e a impunidade generalizadas, o desgaste dos governos, do regime político e suas instituições, a violência policial, a privatização e a falência dos serviços públicos (saúde, transporte, educação, etc.), a concentração de terra, riqueza e poder, as péssimas condições de vida nas grandes cidades, a precarização e superexploração do trabalho, o endividamento e o aumento do custo de vida, tudo isso formou um caldo de insatisfação crônica e generalizada, pronto a explodir como uma panela de pressão. 

Por detrás dos pretextos que possam aparecer como detonadores dos diversos tipos de protestos, o que age nos subterrâneos da história é a percepção difusa das contradições, desigualdades e antagonismos sociais que se consolidaram ao longo da história de um país de origem colonial, genocida e escravocrata. O mesmo mal-estar social que foi adormecido pelas esperanças suscitadas pelos governos do PT entrou em combustão espontânea desde as jornadas de rua que sacudiram o Brasil em junho de 2013.
  
Até aqui a única resposta dos governos às reivindicações da população foi a violência policial. As reivindicações levantadas pela população desde as jornadas de junho foram até aqui ignoradas pelos donos do poder, que não parecem dispostos a ceder em nada sem antes tentarem retomar o controle da situação pelo emprego sistemático da violência estatal, amparado pela operação midiática destinada a desinformar, desorganizar e aterrorizar a população. 

Num país em que a Lei de Segurança Nacional outorgada pela ditadura militar jamais foi revogada, às vésperas da Copa do Mundo circulam no Congresso Nacional projetos de lei que colocam em xeque as liberdades democráticas (como o PLS 499) e, sob o pretexto de combate ao terrorismo, abrem espaço para a criminalização das lutas e das organizações da classe trabalhadora, da juventude e do povo pobre. Recentemente, o governo Dilma anunciou que também enviará ao Congresso projeto de lei neste sentido. 

De sua parte, a burguesia busca retomar o controle da situação com seus métodos de sempre, infiltrando bandos fascistas nas manifestações, disseminando nas redes sociais campanha apócrifa pelo golpe militar em 2014 e utilizando a mídia para apresentar as manifestações como atos de “baderna” e “vandalismo”, com o propósito de aterrorizar a população, espalhar confusão, criminalizar os movimentos e atacar as organizações de esquerda. Nada disso abalou a imensa simpatia que nutre a população pelas manifestações, conforme as mais recentes pesquisas de opinião.

Se as pesquisas até aqui apontam a vitória de Dilma por larga margem, isso não se deve apenas às concessões que foram feitas pelo governo no último período, como o crescimento do salário mínimo e a extensão dos programas assistencialistas, ou ao desgaste historicamente acumulado pela oposição de direita; deve-se também à ausência de uma alternativa de poder que possa catalisar os anseios da maioria explorada e oprimida no país. 

Formados nos anos 1980 na luta democrática contra a ditadura militar e numa conjuntura mundial marcada pela restauração do capitalismo e pela ofensiva global do neoliberalismo, durante mais de vinte anos o PT, a CUT, o MST, a UNE e o PCdoB conseguiram dirigir o movimento de massas no Brasil para canalizá-lo aos processos eleitorais. A conquista de prefeituras e governos estaduais, o crescimento geométrico da bancada parlamentar e a construção das maiores organizações de massa da história do país alimentaram a crescente expectativa pela eleição de Lula Presidente. 

O caminho percorrido muitos anos antes pelos grandes partidos europeus da socialdemocracia e do trabalhismo foi repetido pelo PT numa das maiores economias dependentes do sistema global do capital imperialista, que não por acaso é também um dos países mais desiguais do mundo. Mais de dez anos depois da chegada do PT ao poder em um governo de coalizão com a burguesia, os principais dirigentes, organizações e lideranças que a classe trabalhadora construiu ao longo de mais de vinte anos tornaram-se o pilar de sustentação de um governo que deixou de lado seus compromissos históricos para governar com a burguesia e para ela. 

Estão hoje ao lado dos patrões de sempre, convocando o Exército às ruas para garantir a realização da Copa do Mundo, propondo leis de exceção no Congresso, conduzindo suas organizações ao boicote de todas as greves e movimentos de massa e lançando como palavra de ordem “Em 2014 vai ter Copa”. É esta a experiência concreta que está por detrás da desconfiança que as massas hoje nutrem em relação às organizações tradicionais da classe trabalhadora.   

Vivemos uma escalada de acirramento da luta de classes sem que haja uma direção clara, inconteste e enraizada na classe trabalhadora que possa conduzi-la. Este é o grande desafio que se coloca hoje para a esquerda brasileira. O surrado discurso da defesa deste governo diante do perigo representado pela “volta da direita” pode servir para que Dilma seja reeleita, mas nada significa diante dos desafios estratégicos que foram colocados pelas jornadas de junho.

A tentação oportunista de construir um novo projeto eleitoral de poder, conduzida pelos setores majoritários do PSOL, não poderá servir senão para aumentar mais um pouco a pequena bancada parlamentar deste partido; do ponto de vista estratégico, só poderia representar a repetição da tragédia como farsa. Os métodos anarquistas são incapazes de responder aos desafios da organização da classe trabalhadora para a disputa do poder. No vácuo de direção que se abriu em junho, a violência desorganizada protagonizada por setores como os black blocs serve apenas para alimentar a escalada de violência contra as manifestações.

A dispersão, o divisionismo e o atraso na reorganização sindical ainda mantém nas mãos da CUT e da Força Sindical o controle da imensa maioria da classe trabalhadora organizada nos sindicatos. É neste terreno ainda confuso e disperso que se põe o desafio estratégico de construir uma nova direção para o movimento de massas no Brasil. Na atual conjuntura, a organização e a unificação das lutas em curso em torno de um programa, de organismos de massa e de uma estratégia comum é absolutamente imprescindível.

O imperialismo, a burguesia, o estado, as forças armadas e a mídia não cederão um milímetro em suas posições diante de uma escalada de lutas sociais dispersas, parciais, atomizadas, desorganizadas e politicamente invertebradas. Para superar esta situação, mais do que nunca se impõe a necessidade de construir amplos e democráticos espaços de unidade de ação e de lançar mão de táticas de frente única para construir uma nova direção para o movimento de massas no país. 

É neste sentido que a CSP-Conlutas – o polo mais forte e dinâmico da reorganização sindical no país – aliou-se a setores dissidentes da CUT e outros que romperam com o governismo para construir o Espaço Unidade de Ação, concebido para articular sindicatos e movimentos do campo e da cidade, independentes dos governos e da patronal, em torno do objetivo comum de construir um centro de gravidade para a unificação das lutas em curso.  Até aqui, esta é a única iniciativa concreta para responder aos desafios colocados pela necessária unificação e coordenação das lutas no país. No dia 22 de março, em São Paulo, o Espaço Unidade de Ação fará uma grande reunião nacional para organizar um calendário unificado de lutas. 

O momento que vivemos rechaçará posturas sectárias e divisionistas. A disputa entre as organizações da esquerda por sua autoconstrução é estéril neste momento e deve ser suspensa. A hora é de construir a mais ampla unidade na luta pelos velhos e bons métodos da democracia operária. 

Este é o segundo artigo da coluna do Rodrigo Dantas aqui na ANOTA. A ideia é começar com uma série sobre o junho de 2013 e seus desdobramentos - que se desenvolva na direção de um questionamento das características da IV etapa da luta de classes e das atualizações necessárias das categorias históricas do marxismo.

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