Violências de Estado no Rio dos Megaempreendimentos
CARTA FINAL
Nos dias 12, 13 e 14 de julho, militantes, movimentos sociais do Rio, São
Paulo e Salvador, estudantes e pesquisadores, organizações políticas e de
direitos humanos, moradores de favelas, periferias e comunidades pobres
impactadas por intervenções militares, pela violência policial, por grandes
reformas urbanas, pelos megaempreendimentos e pelos megaeventos, estiveram
reunidos no “Encontro Popular sobre Segurança Pública e Direitos Humanos:
Violências de Estado no Rio dos Megaempreendimentos”. Debatemos coletivamente
as diferentes formas de violência praticadas pelo Estado no contexto de
consolidação de um modelo de desenvolvimento que impõe uma cidade privatizada e
militarizada.
O encontro, planejado desde dezembro de 2012, ocorreu no contexto das
diversas manifestações que tiveram início com o questionamento acerca das
políticas de mobilidade urbana e aconteceram em todo o Brasil a partir de junho
de 2013. Intensifica-se nas ruas a contestação das opressões e violações
históricas, que atualmente se traduzem no desenvolvimento de ações do Estado de
controle e extermínio dxs pobres e negrxs, de ampliação da gestão militarizada
da cidade, de encarceramento em massa, de processos de despejos de ocupações
sem teto e remoções de favelas, de higienização dos espaços públicos, de
criminalização da resistência popular, e em políticas públicas conservadoras e
privatizantes. A lógica das ações do Estado orienta-se, portanto, não para a
construção de políticas públicas democráticas, emancipadoras e de proteção da
vida, mas para a satisfação e garantia dos interesses dos grandes negócios.
Nessa conjuntura, essas ações são realizadas com o pretexto de garantir a
concretização de megaempreendimentos e a realização dos megaeventos.
Nesse contexto, a construção de espaços coletivos e horizontais para
articulação de estratégias de resistência, não é apenas necessária, mas
urgente. É central fortalecer a organização a partir daqueles que são
diretamente atingidos pela lógica de exploração e opressão, potencializar os
espaços historicamente construídos e produzir novas formas de agir
coletivamente frente à reconfiguração do mundo do trabalho no campo e na
cidade.
A mídia hegemônica é um dos grandes instrumentos para a legitimação da
violência, da precarização da vida e da discriminação de negrxs, pobres,
nordestinxs, mulheres, LGBTs, movimentos sociais e moradorxs de favelas e
periferias. É necessário, portanto, valorizar a contrainformação que vem da
mídia independente e das redes sociais como forma de resistência e lutar pela
democratização dos meios de comunicação. Fortaleceremos, assim, uma rede
autônoma de denúncias de violações, solidariedade e proteção entre nós mesmxs.
Nos últimos anos, assistimos a intensificação de um modelo econômico cujo
objetivo é afirmar o território urbano e rural como uma arena de oportunidades
de negócios para o mercado global, onde a própria vida se torna mercadoria.
Este processo está transformando profundamente a cidade, projetando-a a partir
de um olhar militar que desenha os corredores de segurança – verdadeiros
corredores de controle – e aldeamentos de obediência para garantir o fluxo das
mercadorias e proteger as áreas de investimento do capital. Assim, o Rio de
Janeiro é repartido em áreas privilegiadas, territórios descartados e zonas de
sacrifício. Exemplos desse processo são a construção do Complexo Portuário do
Açu, a instalação do COMPERJ e da TKCSA, a construção do Porto Maravilha e as
remoções realizadas de forma direta ou indireta através da especulação
imobiliária que aumenta o custo de vida em diversas áreas. É importante
ressaltar que as remoções são impostas sem diálogo e afetam prioritariamente as
favelas e as populações que historicamente as construíram (nordestinxs, negrxs
e trabalhadorxs pobres), os indígenas e os povos tradicionais, que são
reassentados em loteamentos sem condição de moradia adequada.
Nesse processo de transformação da cidade observa-se a mercantilização da
cidadania, dos espaços e das políticas públicas. Importante exemplo desse
fenômeno é a intensa privatização das políticas de saúde, com a gestão de
serviços sendo entregue a Organizações Sociais, com a recente aprovação da
criação da empresa “Rio Saúde” e crescente investimento público nas Comunidades
Terapêuticas para internação de usuários de drogas. Constata-se o avanço do
conservadorismo religioso no direcionamento e execução de políticas públicas, a
serviço de uma lógica privatista e do lucro. O conservadorismo religioso opera
de forma transversalizada na repressão das diversidades e dos desejos. Está
presente nas políticas sobre drogas, mas impacta também a luta das mulheres, de
gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
Entre xs atingidxs pela retirada de direitos, xs que mais sofrem com esse
processo e com a discriminação são os gays, lésbicas, bissexuais, travestis,
transexuais, mulheres, povos de terreiros, indígenas, quilombolas, povos
tradicionais, pessoas com deficiência, jovens e negrxs. As opressões contra
estes grupos se agravam pela lógica machista, homofóbica, racista,
proibicionista, e patriarcal de nossa sociedade. Precisamos aprofundar e
transversalizar estes debates, inclusive nos próprios espaços de luta que
também reproduzem relações desiguais.
A respeito do debate sobre as políticas de drogas, afirmamos que a
chamada “guerra às drogas”, além de representar retrocesso na luta
antimanicomial, se constitui como dispositivo de controle social,
criminalização e extermínio de pobres e negrxs. As ações de recolhimento e
internação compulsória de crianças e adolescentes, assim como da população
adulta em situação de rua, fazem parte do processo de higienização e elitização
da cidade. Marco significativo é o projeto de Lei Complementar 37 do deputado
federal Osmar Terra, que tem desastrosos impactos para a saúde pública e na
ampliação do controle penal do Estado. Entendendo a “guerra às drogas” como
justificativa para políticas de controle e extermínio, apontamos a necessidade
de descriminalização e legalização das drogas, acompanhadas do fortalecimento
de políticas de saúde pública e de conscientização sobre seu uso problemático.
Afirmamos estes como passos fundamentais para a superação do quadro de
violações trazido pelo proibicionismo.
É necessário conter o avanço punitivo do Estado que fortalece o controle
das populações através da ampliação das categorias consideradas inimigas e que
legitima práticas de repressão violenta a partir do discurso de garantia da
ordem e da defesa da sociedade. Esse poder punitivo violador, cuja mais grave
representação localizamos na atuação policial, opera-se também em perversas
práticas do Poder Judiciário e do Ministério Público. Um dos efeitos mais
drásticos do controle penal verifica-se no encarceramento em massa, tendo o
Brasil hoje a quarta maior população carcerária do mundo. A lógica seletiva e
racista dos encarceramentos atravessa os diversos espaços de privação de
liberdade (sistema prisional, sistema socioeducativo, manicômios e abrigos)
caracterizando um processo de segregação, isolamento e controle de populações
marginalizadas pelo capitalismo. Dentro do projeto de transformação radical da
sociedade é imperativo superar essa realidade que impõe para uma enorme parcela
da sociedade a violação de direitos mais elementares e práticas cotidianas de
tortura. Nesse cenário, repudiamos de forma veemente a tentativa de redução da
maioridade penal e de aumento do tempo de internação para adolescentes no
sistema socioeducativo.Igualmente, denunciamos a ameaça da lei antiterrorismo,
que surge no sentido de criminalizar as lutas e resistências.
Com relação às políticas de segurança pública o debate sobre a
desmilitarização é prioritário e urgente. A lógica militar impõe a perspectiva
da guerra e do confronto bélico na qual há um território a ser ocupado e um
inimigo a ser combatido. Os territórios em questão são favelas e periferias e o
inimigo, as classes populares. A gestão militar da segurança pública afirma-se
nas históricas operações e invasões policiais justificadas pela “guerra às
drogas” com caveirões e outros aparatos de guerra – como na chacina ocorrida no
dia 24 de junho na Maré, com mais de dez mortos, em meio às manifestações do
período –, na expansão das milícias sobre as regiões periféricas da cidade,
configurando um controle “paramilitar” dessas áreas que traz formas específicas
de privação de direitos, e na implementação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs).
As UPPs não são um modelo alternativo de segurança pública, mas sim uma
prática policial nova que se articula ao velho modelo de gestão militar da
pobreza urbana, sendo uma estratégia central do Estado na garantia do processo
de privatização da cidade. A UPP opera como controle militar do cotidiano e da
vida, dos espaços públicos, da juventude, da circulação, da livre comunicação e
produção cultural nos territórios. A “política de pacificação” intensifica a
segregação, submetendo os debates sobre políticas públicas ao debate da
segurança e afirmando a favela como um território a ser neutralizado. Para pôr
fim a este quadro de violações, acreditamos que é necessário acabar com a
militarização dos territórios da cidade, como é o caso das UPPs. Queremos que o
Estado esteja presente nas favelas a partir da garantia ampla, efetiva e eficaz
dos direitos de seus moradorxs e não com a militarização do cotidiano e da vida
destes locais.
No contexto da escalada do uso da força repressiva pelo Estado,
consideramos que as armas menos letais, em lugar de diminuir seu poder bélico,
o intensifica. São alvos privilegiados desse aspecto da violência estatal os
camelôs, manifestantes e população em situação de rua.
Afirmamos a necessidade da desmilitarização imediata da segurança
pública. Para tanto, é central compreendermos a articulação das violências de
Estado do presente com as violações históricas do estado brasileiro, do
genocídio dos povos indígenas e originários, do massacre representado pela
escravidão da população africana sequestrada e seus afro-descendentes neste
território, à opressão continuada de trabalhadorxs em êxodo forçado pelo
capital, assim como todo o período mais recente da ditadura civil-militar no
Brasil. O esclarecimento sobre a violência institucional praticada nesses
períodos, a luta pelo direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação
desses crimes históricos (o genocídio indígena e africano, os crimes da
ditadura civil-militar, Carandiru, Candelária, os Crimes de Maio, os Crimes da
Polícia da Caatinga baiana, o massacre Guarani Kaiowá em pleno estado
democrático nos dias de hoje, entre outros), são etapas necessárias para a
superação do quadro atual.
Todas as pautas apontadas nessa carta são necessárias e urgentes.
Esbarram, no entanto, no limite do modelo de segurança pública instituído nos
marcos do Estado capitalista que por natureza é repressivo. Por isso apontamos
a necessidade da construção de formas de poder popular na luta pela superação
do sistema capitalista.
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