SAÚDE
por Jorge Henrique, de Brasília
Com a globalização aliada aos avanços no campo da informática e da pesquisa científica, a Medicina está vivendo um período de mudanças radicais. Avanços tecnológicos constantes, novos materiais, medicamentos e exames proporcionam tratamentos eficientes, obtendo a cura de doenças que antes eram consideradas irremediáveis.
Apesar dos benefícios irrefutáveis no diagnóstico e tratamento das doenças, é necessário evitar o deslumbramento com o mundo sofisticado da medicina, e considerar na corrida pela Panaceia, aspectos como as tensões entre o valor mercadológico, valor clínico e valor social das inovações em saúde. A história do tratamento de doenças consideradas imbatíveis revela que o desenvolvimento acelerado de recursos tecnológicos é guiado pela demanda crescente de novos pacientes, pela necessidade contínua de inovações e pela competição entre empresas farmacêuticas multinacionais.
Pesquisas clínicas, consenso terapêutico, registro, judicialização, prescrição, propaganda farmacêutica, preço e produção, são capítulos de uma novela em que a trama principal é a disputa de interesses entre laboratórios, empresas farmacêuticas e a população – a parte mais interessada.
O caso da AIDS
Sem dúvida, um dos capítulos interessantes dessa novela é a história do tratamento da AIDS. Os primeiros casos registrados em 1981, a chegada ao mercado do primeiro antirretroviral, o AZT (zidovudina), em 1987, os potentes inibidores de transcriptase reversa desenvolvidos para o tratamento atual, os programas de prevenção e combate, o preço praticado na venda das medicações no mercado mundial e as medicações de patente exclusiva de empresas farmacêuticas como a Merck e a Abbott, expõe os conflitos que há por trás da urgência e demora em desenvolver antirretrovirais, da capacidade de produção de um país e dos interesses das empresas no mercado mundial de medicações.
O Brasil, país que tem um dos maiores programas de combate à AIDS do mundo, por exemplo, investe mais de R$ 1,0 bilhão em compra de medicamentos para tratamento da doença. Até meados de 2007, a Merck vendia ao Brasil o antirretroviral Efavirenz, medicamento importado mais utilizado no tratamento da AIDS, por U$ 1, 59, enquanto que a Tailândia pagava U$ 0,65. Aliado ao lobby das empresas multinacionais farmacêuticas na política mundial tem-se um generoso financiamento do programa de combate à doença, que acirra a disputa pela conquista do mercado interno de tecnologia em saúde. Ou seja, os interesses econômicos estão acima do interesse da população doente.
Pesquisa científica e a ética do mercado
Com a mercantilização da saúde, a integridade da pesquisa científica está sendo abalada, deixando de ser um dos componentes vitais de criação de tecnologia para aliviar o sofrimento humano para se tornar mais um instrumento de troca no mercado da vida.
Décadas atrás, as escolas médicas não mantinham relações extensas com a indústria farmacêutica. Hoje, segundo a patologista Marcia Angell, catedrática do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School, a academia mantém acordos múltiplos e escusos com estas, e estão em difícil posição moral para impedir que seu corpo docente não seja corrompido. A pesquisadora relata que dois terços dos centros médicos acadêmicos têm participação em empresas que patrocinam pesquisa na instituição e que dois terços dos chefes de departamento recebem pagamento de empresas farmacêuticas.
Este tipo de relação tem gerado um movimento contrário àquele que se espera quando se fala em pesquisa científica. A comunidade internacional e aqueles que sofrem de doenças crônicas degenerativa aguardam ansiosamente a descoberta para a cura das doenças, mas o que se percebe é o aumento do fluxo de medicações que na melhor das hipóteses prolongam a cronicidade das doenças e que na pior das hipóteses transformam a pessoa saudável em doente.
Os ensaios de pesquisas clínicas patrocinados por empresas e que são publicados em revistas médicas, por exemplo, favorecem a droga dos patrocinadores, sem contar que os resultados são enviesados, ou seja, os resultados negativos não são publicados, somente os positivos os são. Além disso, se utilizam da flexibilização da Declaração de Helsinque, que regula a pesquisa com seres humanos, para realizar ensaios clínicos multicêntricos nos países periféricos, os quais possuem complexas relações entre indústria e instituições de ensino devido à vulnerabilidade social, para implantar o que se chama de “colonialismo bioético”.
Um fato que comprova tais fraudes envolveu a gigante britânica GlaxoSmithKline. Em 2004, a corporação admitiu ter enterrado provas de que seu antidepressivo Paxil era ineficaz e prejudicial às crianças e aceitou pagar US$ 2,5 milhões de indenização. Também se comprometeu a liberar resumos de todos os ensaios clínicos concluídos após 27 de dezembro de 2000. O fato mais relevante neste caso foi o desnudamento da deliberada e sistemática prática de se suprimir resultados desfavoráveis da investigação sobre os efeitos das medicacões.
O mercado dos psicoativos é reflexo das fraudes cometidas pela indústria farmacêutica. Os diagnósticos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e bipolaridade em crianças, aumentaram quase 60 vezes nos últimos 20 anos. Não é a toa que alguns dos maiores blockbusters (drogas que as vendas anuais ultrapassam a casa de U$ 1 bilhão) são drogas psicoativas.
O lobby da indústria farmacêutica contra a saúde pública
Os Estados Unidos têm uma população de 301 milhões de habitantes e 47 milhões não têm plano de saúde, o que acarreta cerca de 18 mil mortes por ano. O país não conta com um sistema público de saúde e até o transporte de ambulância para o hospital é cobrado dos pacientes.
A indústria farmacêutica é uma das maiores financiadoras das campanhas eleitorais nos EUA. Milhões de dólares são "doados" a políticos americanos e muitos deputados são conduzidos à presidência ou se tornam sócios de multinacionais farmacêuticas, com salários de até US$ 2 milhões anuais.
Em contrapartida, políticas de caráter social no campo da pesquisa científica em saúde são sistematicamente inviabilizadas para beneficiar, somente, a indústria farmacêutica.
Em 2009, o Brasil desembolsou cerca de R$ 4,8 bilhões com ciência e tecnologia, o que representa apenas 0,45% do orçamento geral da União. Enquanto se descompromissa com o desenvolvimento científico, terceiriza a pesquisa científica, incentivando as parcerias entre as universidades públicas e as multinacionais farmacêuticas. O produto final de tal parceria é patenteado pelas multinacionais para ser vendido no mercado.
O Estado como provedor das políticas públicas no campo da saúde
A democratização do conhecimento científico à população só pode ser realizada com a promoção e o incentivo do Estado ao desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, através da destinação de receita orçamentária às entidades públicas de fomento ao ensino e a pesquisa científica e tecnológica.
Em 1996, por exemplo, o Congresso brasileiro aprovou uma lei federal determinando o fornecimento universal de medicamentos antirretrovirais. Os gastos com esse tipo de droga deu um salto de R$ 25 milhões em 1996 para mais de um bilhão de reais em 2009. Em 2007 após avaliação do exercício abusivo dos direitos, abuso do poder econômico e comercialização insatisfatória pela Merck, autorizou a quebra de patente do Efavirenz, adquirindo o licenciamento compulsório e direito de produção. Essa medida gera uma economia de R$ 60 milhões por ano.
Tal medida mostra como é importante o Estado ser provedor de políticas públicas que beneficiem a maioria da população, e não um punhado de empresários que detém o poder quase que exclusivo do Estado. Milhares de pessoas morrem todos os anos por falta de acesso a remédios e cirurgias.
A missão de escolas e hospitais universitários, que justifica seu estatuto de isenção fiscal, é educar a próxima geração de pesquisadores na área da saúde, promover pesquisa cientificamente importante e cuidar da parcela mais doente da sociedade. Restaurar a integridade da pesquisa clínica e da prática médica requer o afastamento dos profissionais da saúde do dinheiro da indústria. Aliado a isso, é preciso maiores investimentos por parte do Estado em pesquisas científicas que tenham como objetivo resolver os problemas de saúde de relevância pública e não de interesses privados.
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