quarta-feira, 10 de julho de 2013

A quem serve o Ato Médico?

SAÚDE
Por Jorge Henrique, de Brasília

O PLS 268/02 (Lei do Ato Médico), que dispõe sobre a regulamentação da profissão de medicina no Brasil, há muitos anos é alvo de críticas de estudantes e profissionais de mais de 13 categorias da Saúde. Existe a necessidade imperiosa que o projeto seja vetado pela Dilma e que se rediscuta outro projeto de regulamentação da profissão médica, que não acabe com a autonomia das outras profissões e que seja um instrumento que resguarde a multidisciplinaridade como um dos pilares da Saúde. Para além disso, é necessário uma análise mais global, que permita identificar o papel que cumpre o projeto no atual modelo assistencial de saúde e que aponte soluções para a disputa de um novo projeto de saúde, que considere os aspectos econômico-sociais à assistência ao ser humano. 

A medicina científica e a transformação da saúde em mercadoria 

No início do século XX, surge no interior das sociedades capitalistas, em disputa às práticas empíricas na medicina - denominação geral para as práticas das pessoas com habilidades curativas -, a medicina científica ou flexneriana, baseada nos ideais positivistas da época, e que influenciaria sobremaneira, até os dias de hoje, o processo de trabalho em saúde. Já naquela época, pôde-se observar a hierarquia gerada entre os homens brancos e ricos que frequentavam as escolas de medicina e os que praticavam a medicina empírica ou alternativa. Estas sofriam uma resistência na promulgação leis de licenciamento para a liberdade da cura e terapias alternativas. 

A medicina flexneriana estruturou-se em base aos elementos necessários para reconstruir o processo de trabalho em saúde. O mecanicismo, o biologicismo e o individualismo se configuraram como pilares desse novo paradigma criado. Consideravam o corpo uma máquina, que poderia ser dissociada em partes específicas para otimizar a compreensão do problema e tentavam explicar as causas e as consequências das doenças através de alterações biológicas sem considerar a dimensão ontológica. Além disso, elegia o indivíduo como objeto da mesma, em detrimento das coletividades humanas, ou seja, é no âmbito pessoal que se deve intervir para minimizar os agravos. Pode-se, inclusive, atribuir ao indivíduo a responsabilidade pelo aparecimento de suas enfermidades. 

Estes elementos, em conjunto, restringem as possibilidades de intervenção ao reduzir o universo dos problemas que afetam o ser humano. Esse paradigma concentra-se em uma compreensão teórico-prática, que sustenta um olhar para o indivíduo sob a ótica da sua doença, interpreta a fisiopatologia como o próprio agravo, e não como expressão, desvinculando-o de uma relação dinâmica com a natureza e com a sociedade. 

Deve-se isso às exigências da sociedade industrial e da lógica mercantilista na assistência médica: os serviços e a tecnologia concentram-se onde há quem possa pagar por eles. É uma das manifestações da ausência do Estado como provedor de políticas públicas e da concepção da saúde como mercadoria sujeita às leis de mercado, principalmente para a acumulação de capital. Uma das consequências disso foi uma imediata consolidação do espaço hospitalar como um ambiente hegemônico para a prática médica. 

A Saúde no Brasil e a disputa do projeto hegemônico 

No Brasil, no final da década de 1980, em que pese a conquista popular da Saúde com as forças sociais à frente das mobilizações no processo de redemocratização do país, tem-se a consolidação da indústria farmacêutica e dos planos privados de saúde, que com os lobbys políticos no congresso, pressionaram o Estado a abandonar os princípios do SUS e a acelerar o processo de privatização da saúde, restando tratar o setor com políticas focais, diferentemente do que foi pensado na sua criação. 

À conquista do SUS, estava imbricada a perspectiva de reforma social, isto é, construção de um projeto de sociedade democrática de massas, que não se reduzia ao setor saúde. Expressava-se a ampliação do conceito de saúde e a necessidade de reestruturação do processo de trabalho a partir da redefinição do seu modelo assistencial, que não mais expressasse o mecanicismo, o biologicismo e a ênfase na cura individual, e que considerasse o aspecto social como um dos determinantes do processo saúde-doença. Isso exigia um novo compromisso ético-político dos trabalhadores de saúde pautado fundamentalmente na questão da construção de uma sociedade livre das contradições do capitalismo. 

Ao abandonarem essa perspectiva, os governos desde Collor até Dilma promoveram um processo sistemático de sucateamento da saúde, com o consequente avanço da privatização do setor. Esse processo de privatização se dá de duas formas: a primeira forma é universalização do privado e a segunda é chamada de universalização excludente. A primeira é devido à atual lógica assistencial do SUS, que privilegia a atenção hospitalar e que, na ausência do Estado, terceiriza a assistência com a contratação do setor privado, o qual se tornou um grande mercado para a indústria de medicamentos e equipamentos médicos. A segunda forma é devido ao próprio processo de sucateamento da saúde, que com hospitais sem infraestrutura, demora nas filas para consulta e realização de cirurgias, falta de médicos, etc., acaba forçando a população a comprar os serviços dos planos privados de saúde. 

No plano educacional as universidades continuaram formando profissionais com a orientação para atuação nos grandes hospitais, pois a educação como superestrutura social reflete os processos econômicos os quais a saúde se insere. A educação tecnicista permite o maior controle por parte do setor privado da mercantilização da saúde, pois os trabalhadores são “adestrados” para realizarem meras técnicas produtivas, sem compreender todo o processo de trabalho em saúde. 

Acrescenta-se a isso a desqualificação profissional iniciada no Brasil na década de 1990, com a terceirização dos serviços de saúde, a queda vertiginosa do salário médio dos trabalhadores em saúde, a super-exploração do trabalhador, a falta de estabilidade no emprego e o próprio desemprego. A ideologia predominante na graduação dos cursos da saúde se materializa, neste cenário, ao conduzir o estudante para uma abordagem individualizante da formação e ao responsabiliza-lo por sua empregabilidade, já que a imprevisibilidade do trabalho não permite que a aquisição do conhecimento em ambientes coletivos como a escola seja utilizada. 

Saúde: um ato médico ou um ato de todos? 

Muitos podem se perguntar: Mas o que tudo isso que foi dito tem a ver com o ATO MÉDICO? A manutenção de um enorme exército de reserva, a precarização do trabalho em saúde, a redução do salário médio do trabalhador, levaram ao longo dos anos, muitas categorias a entrarem em conflito por uma parcela do restrito mercado disponível para atuação. Não se pode achar que o Projeto de Lei do Ato Médico, ao ser demasiado unilateral, impeça que outras categorias também entrem em conflito. Sabe-se que outras categorias da saúde já apresentam querelas inacabáveis sobre o campo de atuação de seus profissionais, e que isso ainda pode gerar disputa por atos privativos. 

Por isso, para se chegar à questão central em todo esse debate, suscita-se realizar, em primeira instância, a discussão sobre qual modelo assistencial os profissionais querem defender para a Saúde. E hoje, colocar em pauta a implantação de equipes multidisciplinares para o atendimento à população, é colocar em xeque todo um modelo assistencial voltado para suprir as necessidades de acumulação de capital. A indústria farmacêutica e as grandes corporações da saúde sabem do risco de se assumir no país um modelo assistencial baseado na multidisciplinaridade e integralidade. Haveria uma reorientação das práticas e o ser humano e não, o dinheiro, estaria em primeiro plano. 

E o que a indústria farmacêutica e as grandes corporações da saúde menos querem é uma mudança radical no modelo assistencial vigente, pois significa perder um negócio, em termos econômicos, bem lucrativo. Fortalecer um modelo centrado na figura do médico, permite um maior controle e uma maior garantia sobre a manutenção do fluxo de venda de medicamentos e de alta tecnologia para exames e cirurgias desnecessárias. A quebra desse modelo, permitiria que todo o acúmulo científico gerado nos últimos anos com a consolidação de novas terapias alternativas para os agravos que afetam a saúde da população, fosse utilizado para uma prática horizontal e não verticalizada, integral e não fragmentada. 

O problema é que os avanços no campo científico da saúde se deram ao mesmo tempo em que as contradições sócio-econômicas do capitalismo se enraizavam no processo de trabalho em saúde, revelando a faceta mais oportunista de nossa sociedade, que é a disputa inescrupulosa entre os profissionais pelo restrito mercado de trabalho. A unidade na luta das categorias de saúde colocaria na ordem do dia a necessidade de superação dessas contradições, com a exigência de mais investimentos na saúde pública, um piso salarial digno para cada profissional, realização de mais concursos públicos, estabilidade nos empregos, etc. 

É necessário que os médicos e os demais profissionais da Saúde tenham um novo compromisso ético-político, que ultrapasse os limites impostos pela política econômica no campo da saúde e coloque em disputa um projeto de sociedade que considere o corpo socialmente investido e que adote uma estrutura econômica social que assegure políticas públicas essenciais para a população. Só assim será possível desenvolver uma prática multidisciplinar, com foco na população e livre das amarras do dinheiro. 

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