segunda-feira, 30 de março de 2015

Esqueletos no armário

por Andrés Lawner, especial para a ANotA

 
Às vésperas de completar 51 anos, o golpe militar de 1964 ainda provoca intensa controvérsia. Uma série de lugares-comuns é dita sobre ele, como “na ditadura não havia corrupção”, “sob os militares o crime estava contido” e “precisamos de uma intervenção militar”. Esta última um repeteco do que era dito nos anos anteriores à queda de João Goulart, onde quem pediu isso acreditava que o regime ditatorial seria curto e restauraria as liberdades. 21 anos se passaram enquanto isso...

  Muito já foi dito e estudado sobre o assunto. Que Goulart, o PTB e o PCB cavaram a própria cova. Que os EUA estavam por trás de tudo. Que não estavam. Até mesmo, que o empresariado que apoiou o golpe era tão importante no regime que este mereceria ser chamado de “ditadura civil-militar”. O que pouco foi dito é o que temos como legado dele até hoje, e que alguns setores da sociedade insistem em trazer à tona dessa “herança maldita”. Os “esqueletos” que ainda insistem em se manter no armário.

Quem são nossos amigos?


  Podemos começar com as lembranças que insistem em sobreviver. Um bom exemplo está no futebol. Recentemente tivemos mais um Brasil X Chile. Um jogo morno, sem graça, nem perto do que ocorreu na Copa do Mundo. Mas, da mesma forma que ocorre nas partidas com a Argentina – “los hermanos”, usando de ironia – criamos uma rivalidade desnecessária, sem equivalente com países europeus. Torcemos contra mesmo, apesar de Chile, Argentina ou Uruguai serem países no mínimo tão pobres e explorados quanto o Brasil. E essa rivalidade desnecessária remonta aos anos 1960, época de Revolução Cubana e de guerrilha boliviana do Che. Neste momento, ser amigo dos países do Cone Sul significava ser inimigo dos EUA ou dos países europeus. Era um “americanismo” bem diferente do que o “grande irmão do Norte” pregava, era um “bolivarianismo” mais perto do sonho de Bolívar e mais distante dos delírios de Chávez ou Evo.

  Mas nesse meio tempo, numa escola que ensinava mais maldades que outra coisa, a Escola das Américas, mantida pelos EUA no Panamá, o currículo pensava em como desmontar mobilizações, desacreditar projetos de mudança social, desarticular internacionalismos. Foi lá que isso de “ganhar dos argentinos” até no cuspe à distância se tornou uma ideologia. Ah, sim, foi lá que os militares brasileiros passaram de alunos a professores em disciplinas como Tortura I ou Infiltração em Sindicatos II.

  Outra dessas heranças malditas é a Polícia Militar. Apesar de existirem desde o século XIX, as PM’s tem essa cara que vemos hoje desde o fim dos anos 1960. E que cara é essa? É como se, sob a máscara da Ku Klux Klan, existisse um rosto de um negro. São pobres e favelados doutrinados para reprimir, julgar e assassinar pobres, negros e favelados. Nem todos que entram na Polícia Militar pensam assim. Nem todos que estão nela pensam assim. Mas a instituição pensa assim. Sua doutrina, seu conjunto de normas – escritas ou não – aponta para que o braço armado do Estado seja não apenas um reforço da lei, mas um porrete nas mãos do Estado capitalista. É por isso que é tão importante quando há uma greve de soldados. Porque essa lógica é rompida. E é por isso que, até hoje, soldados são impedidos legalmente de fazer greve e se sindicalizar: para não subverter esse papel, antes cumprido pelas polícias civis, o de ser o “terrorismo de Estado”, agora fardado.

Saber e ditadura

  Um último legado, esse disfarçado – como parece ser coisa corriqueira, em se tratando de desenterrar práticas dos militares. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) da ditadura não apenas extinguiu o ensino de sociologia e filosofia nas escolas, como criou um monstro chamado “Estudos Sociais”. Juntando o pior da Geografia determinista – aquela que levou Yves Lacoste a considerar que a disciplina, “antes de tudo, serve para fazer a guerra” –, com uma História de datas e nomes ilustres – no jargão, “efemérides” e “vultos” –, servia para ensinar o quão grande era nosso país, ao mesmo tempo que dizia o quão imbecil seu povo era, formado de negros malandros, índios preguiçosos e portugueses da ralé. Bom mesmo seria se os holandeses não tivessem sido expulsos de Pernambuco. Pois é, essa deformidade intelectual parece estar de volta não apenas às escolas, mas às universidades também.

  Um exemplo disso é o ensino das disciplinas no chamado Ensino Fundamental, o antigo 1º grau. Aqui vemos duas variantes: ou as disciplinas são fundidas “na marra”, como nos Ginásios Cariocas e “Escolas do Amanhã”, da rede municipal de educação do Rio. Ao invés de juntar as matérias, usamos um único professor para todas elas, de Matemática a Língua Portuguesa, passando por História e Geografia. “O objetivo é que o professor passe a atuar de forma mais ampla comparado ao professor especialista, que tem foco em uma disciplina. O mentor acompanha apenas um time ao longo de todo o ano letivo e é responsável por auxiliar o aluno no seu processo de aprendizagem”, explica Rafael Parente, ex-subsecretário de novas tecnologias educacionais da SME-RJ, um dos idealizadores do projeto, atualmente assessor do Movimento Todos pela Educação. (veja mais em
http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/0/qual-o-futuro-do-projeto-gente-311224-1.asp). Melhor dito, o professor deixa de ser professor e se torna um gestor, um tecnocrata, no velho estilo dos jovens gerentes da época da ditadura, só que sob nova roupagem. Mal ou bem, importante é o diploma, mais do que aprender de verdade, pois isso de ser bem-formado apenas cria “subversivos”...

  Pior mesmo só em São Paulo. Uma recente notícia apontava que o governo paulista iria retirar História, Geografia e Ciências do currículo das escolas do primeiro segmento do Ensino Fundamental, o antigo primário. Não demorou muito para o governador Alckmin desmentir a informação, mas a emenda saiu pior que o soneto. “Não houve mudança na base regular do Ensino Fundamental, portanto no caso dos 1º, 2º e 3º anos o conteúdo relativo a essas áreas de conhecimento já era e continuará sendo abordado de forma transversal nas disciplinas estabelecidas, sem ferir o que diz a Lei de Diretrizes e Bases [da Educação Brasileira]”, aponta nota enviada pela Secretaria de Educação (veja mais em
http://www.viomundo.com.br/denuncias/governo-alckmin-acaba-com-aulas-de-geografia-historia-e-ciencias.html). Melhor dito: no meio das aulas de Português e Matemática, o professor dá seu jeito de embutir os conteúdos das outras disciplinas. Malabarismo pedagógico.

  Ah, há ainda os que insistem em mentir descaradamente sobre o assunto. Em “historiês”, chamamos esses caras de “negacionistas”. O mais conhecido deles, nessa área, se chama Marco Antônio Villa, e é figurinha fácil nos debates da Globo News. Ele é parte de uma corrente de historiadores denominados “revisionistas”, que pretende embelezar o que é feio ou enfeiar o que é legal, em se tratando da participação das classes trabalhadoras, seus partidos e sindicatos na História do Brasil. Para Villa, a ditadura não teve 21 anos, pois nem em todo momento foi dura. Alguns períodos foram de “ditabranda”, como se a truculência militar fosse o parâmetro para se medir se um regime é ditatorial ou democrático. Como escreveu Villa,
“Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982.” (“Ditadura à brasileira.” Folha de São Paulo, 5 de março de 2009, p.3, citado por Demian Melo em “A historietografia de Marco Antonio Villa: um negacionismo à brasileira", http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2016)
Justiça e castigo

  O fato de existir ainda uma justiça militar em separado, o serviço militar obrigatório, o instrumento dos Decretos-Lei (hoje chamados de “Medidas Provisórias), muito ainda remete aos anos de chumbo. É verdade que avançamos muito em exorcizar nossos fantasmas. Mas só porque sabemos o nome de muitos deles não resolve. Afinal de contas, cada vez que se tenta mandar um deles para a cadeia, para cumprir o seu julgamento de Nuremberg, aparece um “defensor das liberdades” e lembra da lei de Anistia, a que livrou não apenas os lutadores pela democracia, mas também os torturadores e assassinos de verde-oliva.

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